domingo, 24 de janeiro de 2016

De pernas para o ar


 


Não te falo da dor

que me revolve as entranhas,

dos enganos de alma repetidos

nem da fome dos sentidos.

Não tenho apetite.

 

Hoje lanço-me

de pernas para o ar.

O esqueleto

guardo-o no armário

e a alma na cama.

Está tudo ao contrário.

 

Está tudo invertido,

em repouso,

No quarto

sem passos

nem pássaros.

 

Hoje abandono-me

e perco o caminho.

 

O exterior das coisas

Faz perder a roupa,

deixando à solta

os rios de sangue

a correr pelo chão.

Não contes que, por isso,

me tens na mão.

 

O meu lamento

bate à janela

no soprar do vento.

 

Agora poderei assumir

qualquer posição,

tal como as palavras,

pois então.

 

Talvez este poema

não esteja no ponto.

Talvez deva terminar

com uma virgula.

 

Está tudo de pernas para o ar.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Foge de mim




Foto: Natalia Drepina


Foge de mim.

Não queiras saber do que não vês.

Os espelhos estão sonolentos

e não refletem o que sou.

 

Não queiras saber da nudez da pele,

nem da luz da carne.

Lembra-te que quando a noite cai,

fecho os olhos dentro das pálpebras

e enterro-os debaixo do sono.

 

Não me perguntes

pelas nuvens de algodão

que carrego aos ombros.

 

Não procures explicação

para o orvalho perfumado

que trago na boca.

Não há!

 

Não ouças os passos

que me levam a imagens passadas.

Não te conduzem a lugar algum.

 

Não procures o sol que ilumina a terra

e se infiltra no interior da pele,

pois descobrirás a sombra

que me acompanha.

 

Foge de mim.

A inspiração é tão profunda

Que faz doer os pulmões.

 

Foge de mim.

É possível que aqui

percas a respiração.

domingo, 10 de janeiro de 2016

A casa


 
 
Foto: Alexin
 
Anda, vamos construir uma casa!

O teu corpo de algodão

é o alicerce.

Um lugar (in)comum.

 

Anda, vamos construir uma casa!

neste  chão em terra

lavrada pelos pés.

 

Anda, vamos construir uma casa

com ventos nos telhados

e janelas de chuva.

 

Anda, vamos construir uma casa

com portas de abraços.

Não há fechaduras.

Tudo se abre sem chave.

 

Anda, vamos construir uma casa!

Entre a cabeça e a boca

mastigo o cimento

Quero paredes

enchidas de vozes,

ecos teus

e meus.

 
Anda, vamos construir uma casa

sem métrica nem medida.

Que seja infinita

mas contida

nas suas raízes mais profundas.

 

Anda, vamos construir uma casa!

Tudo preto no branco.

Tudo branco no preto.

Na neutralidade seremos nós:

únicos.

 

Anda, vamos construir uma casa

decorada com os silêncios vazios

que se abrem em colcheias.

 

Anda, vamos construir uma casa!

Vamos aquecer-nos

no fogo dos olhos.

 

Anda, vamos construir uma casa!

Tenho palavras presas no cabelo.

Precisamos de algo novo

para habitar.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Quando os sonhos morrem




Dedicado ao poeta António Silva Melo

 

 Talvez não saibas,

mas as ruas estão desertas.

Mantenho a luz aberta

no meu corpo doente.

A cama está desfeita.

Sinto a carne insatisfeita.

 

Ela fica estendida na cama

em brancos silêncios,

sem promessas de bocas abertas.

 

Quando os sonhos morrem,

deito-me homem

e ergo-me fantasma.

 

A minha vida é esta:

uma longa parada de vultos.

Tenho fome no fundo das entranhas,

mas não sei matá-la.

Tenho-a num gemido

dentro de mim.

 

Bordo-me de luzes acesas.

É a mão que ultrapassa

a noite.

 

Talvez ninguém conheça

a essência dos poemas,

que me percorre dos pés à cabeça:

a tua existência.

 

Hoje,

as palavras do corpo

são poemas ocultos

que te deixo

quando os sonhos morrem.