sábado, 27 de fevereiro de 2016

Ironicamente



Hoje comi chocolate.

Adoro chocolate, sabias?

Bem te disse que te falaria

de coisas doces.

 

Não sou uma mulher madura.

Já caí várias vezes.

Ninguém colhe o que cai.

 

Não tenho casos arquivados.

Não tenho casos por resolver.

Sou apenas um caso perdido

que está preso no domicílio

de um corpo.

 

Se fosse costureira

falaria para os meus botões.

Falo com a minha mãe,

Língua Portuguesa,

e prego para peixes de papel.

 

Quando me cantam

Versos em linhas de fogo,

tapo os olhos

para não cegar dos ouvidos.

 

Quando idealizo,

faço-o de luz apagada

pois acredito

que terei ideias brilhantes.

 

Queria usar as palavras

para me despir por dentro.

Dizem que isso

é algo que não se vê.

Atirei a roupa pela janela fora.

 

Tenho um quarto na Lua

e um quarto na hora.

Ainda demoras

ou vens agora?

 

Antes que me esquecesse

de apagar a luz,

fiquei sem companhia na cama.

A almofada caiu.

 

Fiquei sem palavras.

Fiquei sem companhia.

Fiquei sem roupa.

Ironicamente.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Aqui há gato!




Foto: Angela Vicedomini



Nem sei como começo

porque aqui há gato

e isso não tem nexo.

 

Chamas por mim.

És felino.

Com olhar paciente,

passos perspicazes,

garras afiadas.

 

Não fujo de ti.

Fujo para ti.

 

Não compreendes as palavras,

então não tas direi.

Posso beijar-te

para as encontrar,

Elas são isentas de vontade

e desejo,

embora andem enroladas

na língua.

 

Talvez perca a respiração.

Talvez seja melhor

abrir a janela

e oxigenar o coração.

 

Passo a mão pela tua

cabeça para descobrir

o que pensas.

Ronronas o que sentes

de olhos fechados.

 

É quase certo

estares perto

quando sinto o calor

que imana do fundo de ti

quando deslizo

para te apanhar.

 

São precisos pontos de contacto

para haver a sintonia perfeita

dos corpos enrolados

nos lençóis

com a cabeça na travesseira.

  

Não precisas de correr

atrás de mim.

Vai correr tudo bem,

ronronas.

 

Eu não (faço)

correr mais tinta.

Afinal não há nenhum poema aqui.

Aqui há gato!

domingo, 14 de fevereiro de 2016

É ridículo




Tenho o teu silêncio

preso na chama(da)

caída no meu ouvido.

Nunca te liguei.

 

Desconheces a minha morada

por isso,

a caixa de correio

nunca trouxe Amor

rabiscado numa folha.

 

Seria um Amor registado

com aviso de receção.

Seria um envelope selado

com o teu cheiro a mofo.

 

Estaria de mãos abertas

para te desvendar.

 

Nada disto seria ridículo.

 

Com sentimentos esdrúxulos,

com palavras agudas,

prenderias o meu coração

com a corda da possessão

em todos os espaços

da imaginação.

 

Nada disto seria ridículo.

 

Iria passar os dedos na tinta

e folhear-te,

e isso iria deixar-me faminta

de ti.

 

Todas as Palavras

seriam beijos

nos lábios.

 

Nada disto seria ridículo.

 

É raro ver química

em pedaços de matéria.

 

Hoje fecho a gaveta

onde tenho as folhas brancas

com as palavras que

nunca me disseste.

 

Isso sim.

É ridículo.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

O susto da escuridão



Foto: Katia Chausheva


As árvores acariciam

as nuvens.

A luz negra

dos olhos das aves

vela-me.

Arranco os fluídos

Das paredes.

 

Estou dentro do espelho

e durmo no berço

da voz.

Não há motivos

para te vidrares

em mim.

 

Bate ao vidro.

Ele está trancado

com um laço.

Irás desfazê-lo?

 

Cruzo as pernas.

Espero.

Vejo-te.

Aguardas ver

o que ocultam as folhas

de cetim.

 

Bebes um copo

de água

da fonte cruzada

entre os lábios e a língua.

 

O gesto

faz-te vir

para o meu corpo.

Desvendas por dentro

o que há

no convento.

 

Agora já não encontro

dentro dos olhos

o susto da escuridão.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Sorrisos de algodão



Foto: Kemal Kamil


Talvez nunca perca

o alcatrão

das palavras

mastigadas,

mas nunca engolidas em seco,

que se agarraram aos dentes.

Alastra mas não mata.

Apenas desgasta.

Desvitaliza-me.

 

Na fissura da raiz

encontro o abismo.

Nas escadas caligráficas

mantenho as mãos

estendidas  para a dança

com o pó.

 

Conserva o que existe.

Revela que estou só.

 

Nesta espécie de céu

em que os sorrisos são de carvão,

as sombras despendem-se do chão.

 

Apago o que está na cabeça

para que nada eu esqueça.

 

Mesmo com as mãos molhadas

de ternuras,

não coloco os pontos nos is.

Não são pontos fortes.

 

Deixo-te com razão,

um sorriso de algodão

que não engana ninguém.