domingo, 31 de julho de 2016

A fome continua



Deixa-se a pele

pendurada no cabide.

Esvazia-se o corpo.

Reza-se a missa

de corpo presente.



Enterram-se os corpos

nas valas comuns:

lençóis areados.



Ficam as memórias:

perfil sem voz

atrás do espelho.

Capturadas a cores.

Vivas no flash.



A morte ganha vida.

Reduzimos a distância

no encontro dos corpos:

desvio e embate

para o orgasmo.



No final,

deixaste o melhor de ti.

Vieste-(te).



Nada é negativo.

As pessoas morrem

e a fome continua.

sábado, 23 de julho de 2016

Será que cabes?




Foto: Marta Bevacqua



Abro a boca.

Não suplico.

Humedeço os lábios.

Coloco a língua de fora.

Apenas humidade salivar.



Verifico a bolsa.

Tem lá o dicionário.

As palavras não têm valor algum.

Coloco a mão no bolso.

Está vazio.



O verso está em queda.

Está tudo em fundo perdido.

Tens queda para o abismo?



Não posso usar palavras caras

porque não as posso comprar.

Uso palavras simples.

Singulares.



É preciso dar-lhes corda

(vocal)

para as fazer render.

Mesmo sem rima,

ficam no ouvido.

Não preciso de gastar papel.



Deito-me sobre tábuas

para que contemples na nudez

o que não sabes.

Encontra um cantinho na estrofe.



Será que cabes?

domingo, 17 de julho de 2016

No canto




 Foto: Plfoto

Esbatida nos limites

impostos por uma louca.

Invisível a quem olha.

No escuro tudo é pardo.



Libertas o meu ser

do espelho.

No quarto do fundo

fico recortada

na parede.

Nua.

A preto e branco.



No encontro de duas paredes,

na aresta perfeita,

tens o meu corpo aberto.

Estou no canto.



Amadurece o desejo

e eu caio

no eco do grito

dos lábios cerrados

quando é no canto dos lábios

que nasce o sorriso.



O canto das sereias.



A humidade escorre

do espelho.

Limpo-o.



Queres pôr-me a um canto,

de novo?

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Sê fogo




Foto: Imaginatio Sensi

Nasceste selvagem.

Não és de ninguém.

Nunca estiveste só:

as sombras dividiram

o teu corpo em dois.



Rasgaste as entranhas alheias.

Apenas ossos.

Sem carne.

Sempre sofreste de falta de tato.

Mantinhas

o ranger de dentes.



Ninguém chegou até ti.

Deixaste rugidos interditos.



Hoje!

Coloca as garras de fora

sem submissões.



Pisa o risco

sem ser isco.

Não chegues a roupa

ao pêlo.

Deixa-a cair.



Muda de pele.

Incendeia o círculo

de feras.

Não sejas selvagem.

Sê fogo.

domingo, 3 de julho de 2016

Sem nós




Foto: Raymond Elstad

Despes-me a camisa

e é assim que a noite

cai.



Navegamos sem velas.

Apagamos as luzes.

Percorremos o nó:

uma milha de distância.

Somos mais velozes

 que o som.



Desaperto-te o nó da gravata

sem nó na garganta

mas sem nada

para falar.



Entre a  parede e o corpo

enterras a espada.

Contorço-me sem saber

para onde escapar.



Não me deixas fugir.

Apenas sorris.

Queres ouvir-me gritar.

Da incisão,

descobres a nascente.



A fuga orgásmica

é a única saída.

Um homicídio lento

onde me rendo

sem nós.